
Mundo pós-pandemia terá valores feministas no vocabulário comum, diz antropóloga Debora Diniz
Antropóloga afirma que conceitos como cuidado, proteção social, interdependência e saúde terão que ser discutidos
Úrsula Passos
RIO DE JANEIRO
fonte: Folha Uol
A antropóloga Debora Diniz arrisca uma previsão para o mundo pós-pandemia do novo coronavírus: será um mundo mais alinhado aos valores feministas.
A professora da faculdade de direito da Universidade de Brasília recebeu no início deste ano o prêmio Dan David na categoria igualdade de gênero por sua defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. É também por essa defesa que ela vive desde 2018 fora do Brasil.
Diniz teve de deixar o país por sofrer uma série de ameaças após defender a descriminalização do aborto em audiência pública no Supremo Tribunal Federal. Ela coordena e é uma das fundadoras do Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, que realiza a Pesquisa Nacional de Aborto. O estudo em 2016 mostrou que pelo menos uma em cinco mulheres no Brasil já fez um aborto.
Ela é também uma das maiores pesquisadoras dos impactos do vírus zika no país. Em 2017, ganhou o prêmio Jabuti de ciências da saúde por seu livro “Zika: do Sertão Nordestino à Ameaça Global” (Civilização Brasileira), em que narra a história dessa epidemia que leva à microcefalia de bebês e a outras síndromes neurológicas.
Além disso, ela escreve e dirige documentários, como “Hotel Laide”, sobre um hotel social na região da Cracolândia, em São Paulo, e “À Margem do Corpo”, que acompanha a história de uma mulher vítima de estupro no interior do estado de Goiás.
Nas últimas semanas, Diniz criou uma conta no Instagram (@reliquia.rum) para fazer, junto dos desenhos do artista Ramon Navarro, pequenos registros de memórias de mulheres mortas pelo vírus durante a pandemia.
Por telefone, ela fala sobre como o novo coronavírus atinge as mulheres ao gerar desamparo na sociedade, sobre a importância do luto e sobre as relações entre o que vivemos hoje e a zika.
A pandemia atinge homens e mulheres de forma diferente? O afeto que nos une agora é o desamparo. Olhamos e buscamos proteção. Quando o Estado não protege e nos abandona, é aí que a pandemia tem gênero, porque o cuidado cabe às mulheres.
As mulheres são as responsáveis pela economia do cuidado, e quando temos uma distribuição desigual do cuidado e trancamos as pessoas em casa —ou presumimos que as pessoas têm casa e que ela é um espaço seguro— a centralidade do cuidado para a vida social se amplifica.
A casa pode ser um espaço de violência doméstica. Supõe-se que as mulheres têm uma casa em que elas possam ser trancadas. Não à toa aumentaram o índices de divórcio na China e aumentam os de violência. A convivência na casa para os homens é algo insuportável, tanto que esse mundo das piadas entre os homens é um modo de comunicação do quanto está sendo insuportável para eles a vida doméstica.
E como essas mulheres do cuidado estão sendo afetadas? As mulheres da economia do cuidado perderam um elo fundamental para a sobrevivência: a conexão com outras mulheres para tomar conta das crianças. As avós têm um papel fundamental para as mulheres trabalhadoras mais precarizadas e, com essa pandemia, houve a segmentação dos mais velhos.
A anomia social imposta pela pandemia amplificou a desigualdade de gênero para as mulheres da economia do cuidado e as abandonou. Não sem os homens, mas sem os equipamentos do Estado, como creches, escolas. Elas ficaram sozinhas, e as que nunca estiveram sozinhas romperam seus laços com os idosos.
A melancolia que vivemos na pandemia é uma pergunta sobre nossa sobrevivência como espécie e é claro que ela é vivida de formas diferentes a partir de regimes prévios de precarização da vida, como pela mulher que tem de sair para trabalhar no mercado e a que pode fazer teletrabalho e ficar com os filhos. São níveis de exposição à morte diferentes.
Existe uma presunção no cumprimento das regras de isolamento que são regras de uma racionalidade científica apenas. Mas são também regras que têm de ser adaptadas à possibilidade de sobrevivência das mulheres. Algumas vão desobedecer as regras porque assim elas têm que fazer, porque são as cuidadoras.
As mulheres da elite também são tocadas diretamente com o desamparo provocado agora na economia invisível e silenciosa do trabalho doméstico que as protegia para o sucesso profissional. Quando as mulheres da elite são devolvidas à casa e se veem com as múltiplas jornadas concomitante ao sucesso profissional, elas também são obrigadas a mudar sua narrativa feminista sobre o mundo.
Uma resposta a uma pandemia é uma resposta sobre a reprodução social da vida e ela passa pelas mulheres.
A senhora criou um Instagram para fazer relicários de mulheres mortas pela pandemia. Qual a importância de viver o luto? Toda vez que temos uma anomia como a que estamos vivendo, as pessoas passam a ser números e as biografias desaparecem. As notícias de mortos são como prontuários médicos, idade, comorbidades, e não biografias de pessoas pelas quais alguém sofria. Isso distancia de mim, como leitora, a possibilidade de que aquela morte fosse a minha e tira das pessoas a possibilidade de sofrer esse luto.